Uma guerra real e os dividendos da guerra cultural. Artigo de Massimo Faggioli

Veículo blindado militar do exército russo dirige ao longo de uma rua em Armyansk (Foto: Vatican Media)

03 Março 2022

 

Os cismas da Igreja às vezes seguem ou até anunciam uma guerra. Há mais do que apenas uma palavra em comum entre “guerras culturais” e “guerras reais”: uma leva facilmente à outra.

 

A opinião é do historiador italiano Massimo Faggioli, professor da Villanova University, em artigo publicado por La Croix International, 01-03-2022. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

 

Segundo ele, "Putin abriu uma brecha entre diferentes fronts nas 'guerras culturais' que engolfaram as Igrejas desde os anos 1990 com o fim da Guerra Fria. E não é coincidência. A invasão da Ucrânia pode ser um ponto de virada".

 

Eis o artigo.

 

O ataque russo contra a Ucrânia, que começou no dia 24 de fevereiro, terá um impacto significativo sobre a Igreja Católica.

 

Houve muitas guerras ao redor do mundo desde a Segunda Guerra Mundial, inclusive na Europa – especialmente nos anos 1990. Mas a agressão da Rússia contra a Ucrânia é diferente por razões políticas e militares.

 

Desde o tenso impasse entre John F. Kennedy e Nikita Khrushchev, há cerca de 60 anos, um presidente estadunidense e um líder russo não se confrontaram de forma tão dramática quanto estamos testemunhando hoje.

 

Encontro entre Kennedy e Khrushchev em Vienna (Foto: Flickr/Domínio Público)

 

Isso também se deve às conotações religiosas e teológicas da guerra da Rússia contra a Ucrânia, que tira proveito do cisma dentro das Igrejas ortodoxas orientais e do quase cisma dentro do catolicismo.

 

A Ucrânia ocupa um lugar central tanto no cristianismo ortodoxo (marcado pelas tensões de Moscou com Kiev e com Constantinopla) quanto no catolicismo (marcado pela relação às vezes desconfortável que a Igreja bizantina ou greco-católica – às vezes chamada de “uniatismo” – tem com Roma).

 

Uma continuação da política eclesial?

 

As consequências da guerra que agora devasta a Ucrânia provavelmente terão repercussões durante décadas não apenas na ordem internacional e nas relações ecumênicas, mas também na comunidade católica intraeclesial.

 

No contexto da globalização das “guerras culturais” estadunidenses, os ideólogos do ressentimento religioso veem a invasão russa da Ucrânia como a continuação da política eclesial por outros meios.

 

Ao longo do seu pontificado, o Papa Francisco teve que espalhar a sua mensagem de unidade da única família humana em uma ordem global cada vez mais dilacerada. Se o que está ocorrendo agora não é o início de uma nova Guerra Fria, é claro que também não estamos mais em uma ordem mundial pós-Guerra Fria.

 

A guerra na Ucrânia ocorre após a pandemia da Covid-19, que começou em 2020, a crise da democracia estadunidense, que culminou no ataque ao Capitólio no dia 6 de janeiro de 2021 e a retirada caótica do Afeganistão em agosto de 2021.

 

Mas o mais importante é que ela está ocorrendo após as grandes disrupções que se aceleraram em 2016 com o Brexit, a tentativa de golpe na Turquia, a eleição do presidente Duterte nas Filipinas e, especialmente, a eleição do presidente Donald Trump nos Estados Unidos, um homem que estava envolvido em um relacionamento muito ambíguo (ou pior) com o presidente russo Vladimir Putin.

 

Uma fraqueza em perceber a ameaça russa

 

A guerra na Ucrânia confirma uma grande intuição do pontificado de Francisco – que estamos vivendo atualmente uma Terceira Guerra Mundial “em pedaços”, algo que ele já havia falado em 2014 em referência ao conflito na Síria.

 

Ela também corrobora a interpretação do papa sobre os nossos tempos como um possível retorno aos anos 1930 e as suas advertências contra o retorno do populismo hitlerista, especialmente a partir de 2017.

 

Batalhão de Azov, organização paramilitar da Ucrânia, com bandeiras nazistas e da OTAN (Foto: Wikimedia Commons/Gianluca Agostini)

 

Apesar das inegáveis falhas do sistema democrático na Ucrânia, a invasão russa de um Estado soberano também faz parte do embate entre os sistemas etnopopulistas e autoritários, de um lado, e as aspirações democráticas das nações e dos povos, de outro.

 

Ela também confirma uma fraqueza deste papado em perceber a ameaça russa.

 

Ou, pelo menos, houve uma falha em comunicar que o desejo do papa de se engajar com o Patriarcado de Moscou como um parceiro-chave no avanço do ecumenismo e das relações internacionais não prejudica a resposta da diplomacia vaticana às ameaças que Putin há muito tempo representa para a paz.

 

Isso já podia ser visto há vários anos.

 

A resposta inicial do papa à invasão de Putin

 

O Patriarcado de Moscou continua sendo o interlocutor indispensável aos olhos de Roma, mas estudiosos da tradição ortodoxa oriental vêm alertando o Ocidente há anos sobre a manipulação da Igreja por parte de Putin a serviço de uma ideologia neoimperial.

 

Essa manipulação está tendo consequências que vão além da Rússia e muito além da religião.

 

O Vaticano e o Papa Francisco tentaram corrigir a rota nos últimos dias, mas, entre os católicos ucranianos, pode-se sentir um sentimento silencioso de decepção.

 

Há uma diferença com aquilo que Francisco fez em crises anteriores. Por exemplo, ele liderou pessoalmente uma vigília de oração na Praça de São Pedro no dia 7 de setembro de 2013, quando os Estados Unidos ameaçavam atacar a Síria, algo bem diferente das declarações e gestos públicos que ele fez em relação à Ucrânia e à Rússia.

 

No período que antecedeu a invasão do dia 24 de fevereiro passado, os apelos pessoais de Francisco foram tímidos e moldados pela relutância em chamar a agressão russa pelo seu nome.

 

E, até o fim de fevereiro, o papa e as mídias vaticanas tiveram muito cuidado para evitar mencionar a Rússia e Putin.

 

Complicações para a narrativa política do pontificado de Francisco

 

Esta guerra é um teste fundamental para a doutrina vaticana da “neutralidade positiva”, como o secretário de Estado, cardeal Pietro Parolin, destacou em um discurso em fevereiro de 2019 – uma postura que contribui para construir um diálogo entre as partes envolvidas em favor da promoção dos direitos humanos.

 

A guerra na Ucrânia também complica aspectos-chave da narrativa política em geral do pontificado de Francisco.

 

Em seus ensinamentos e gestos, o papa argentino se detém com razão sobre as falhas e responsabilidades do Ocidente, por exemplo, em relação à imigração, aos refugiados, ao ambiente.

 

Putin recrutou o metropolita Hilarion e o transformou em ministro das Relações Exteriores da Igreja Ortodoxa (Foto: Igreja Ortodoxa Russa)

 

Ele faz isso sem jamais adotar a ideologia do iliberalismo, mas está claramente tentando desvincular o catolicismo da ordem liberal ocidental, em favor de uma perspectiva global pós-capitalista mais alinhada aos valores do ensino social católico.

 

Mas o fato é que as ameaças contra os valores da doutrina social católica – a começar pela dignidade de todas as pessoas humanas – não vêm apenas do capitalismo ocidental e da modernidade liberal.

 

Elas também vêm de outros sistemas que o Vaticano tem sido cauteloso em criticar abertamente, defendidos pelas potências globais emergentes ou que estão recuperando esse status: a Rússia, assim como a China e a Índia.

 

A guerra e as trajetórias teológicas no catolicismo global

 

Além disso, a tentativa de Francisco de oferecer uma alternativa ao liberalismo ocidental agora deve levar em conta que, com o retorno de um confronto direto como a Guerra Fria, a abordagem católica ao mundo global também pode ter que lidar mais uma vez com uma nova geração daqueles “liberais da Guerra Fria” que foram um pilar fundamental do catolicismo estadunidense do século XX.

 

O papa, por outro lado, tem estado muito distante dessa mentalidade, tanto teológica quanto politicamente.

 

A guerra na Ucrânia provavelmente também terá consequências importantes para as trajetórias teológicas do catolicismo global.

 

Por um lado, ensinar e falar sobre o Concílio Vaticano II (1962-1965) tornou-se terrivelmente complicado.

 

As aspirações conciliares de unidade ecumênica e inter-religiosa na única família humana parecem ser hoje algo perdido no passado, especialmente para os estudantes nascidos nos anos imediatamente anteriores ou posteriores ao 11 de setembro. Eles conheceram apenas um mundo moldado pelos ataques terroristas do 11 de setembro de 2001.

 

Paralelamente a isso, a guerra de Putin na Ucrânia está mudando (ou pode mudar) algumas das pressuposições que o catolicismo pós-Vaticano II sustentou sobre paz e guerra.

 

Isso não quer dizer que mudará o ensino da Igreja sobre a paz de João XXIII em diante, mas sim o modo como os católicos percebem essa questão.

 

Questionando a “guerra justa” e a democracia

 

Até agora, houve um esforço para repensar a teoria da “guerra justa” por parte da Igreja, até ao ponto de abandoná-la oficialmente. Um congresso do Pax Christi, realizado no Vaticano em abril de 2016, pediu, em vez disso, uma radicalização profética do magistério sobre a paz.

 

Mas isso agora é mais difícil de aceitar, especialmente se você mora na Europa oriental e se sente ameaçado pela Rússia de Putin.

 

Ao mesmo tempo, o argumento pela paz de João XXIII – encontrado em seu testamento pessoal e sua última encíclica Pacem in Terris – é mais atual do que nunca.

 

Finalmente, a guerra na Ucrânia pode e deve despertar as Igrejas, especialmente as católicas, do seu agnosticismo moral e teológico em relação à democracia.

 

É verdade que a propaganda de Putin apela aos sentimentos nacionalistas e neoimperiais mais dos ortodoxos russos do que das pessoas no Ocidente.

 

Mas, ao mesmo tempo, nos últimos anos, vimos não apenas a disseminação do sentimento pró-Putin nos Estados Unidos, mas também o aumento de um ressentimento pró-Putin entre católicos proeminentes.

 

O fascínio do catolicismo estadunidense de direita por Vladimir Putin

 

As mais recentes postagens nas redes sociais digitais dos gurus do catolicismo antiliberal e integralista nos Estados Unidos sobre a guerra na Ucrânia são evidências da radicalização dessa cultura. Isso não está apenas em alguns cantos obscuros da internet: tornou-se parte do novo establishment católico.

 

O ataque da Rússia à Ucrânia inclui um elemento de cruzada que vários conservadores religiosos ou reacionários influentes acham cativante. São os mesmos suspeitos que sempre acusaram o Papa Francisco de ser populista e não um verdadeiro católico.

 

É difícil descrever a corrupção intelectual e moral dos direitistas católicos dos Estados Unidos, que agora estão zombando da Ucrânia, senão até torcendo abertamente por Putin. Desde 2016, as mídias católicas de direita apoiam regular e cegamente os apoiadores de Putin, senão até o próprio Putin.

 

Entre aqueles que pagaram o preço por essa corrupção intelectual e moral, está também a unidade da comunidade ortodoxa oriental nos Estados Unidos.

 

Existem alguns pontos em comum entre a causa perdida de Putin (“o colapso da União Soviética foi a maior tragédia geopolítica do século XX”) e a causa perdida dos conservadores estadunidenses (a Guerra Civil como uma “nobre luta” pelos direitos dos Estados).

 

Putin abriu uma brecha entre diferentes fronts nas “guerras culturais” que engolfaram as Igrejas desde os anos 1990 com o fim da Guerra Fria. E não é coincidência.

 

A invasão da Ucrânia pode ser um ponto de virada.

 

“Guerras reais” e “guerras culturais”

 

O ataque contra o Capitólio em janeiro de 2021 não estourou a bolha dos católicos de Trump, mas o apoio deles à guerra de Putin na Ucrânia pode fazer isso. Isso é verdade para os católicos trumpianos nos Estados Unidos, mas também em outros países.

 

Na Itália, por exemplo, líderes de extrema direita como Matteo Salvini e Giorgia Meloni abraçaram a retórica antiocidental de Putin nos últimos anos.

 

Mas este momento não lança apenas uma luz sobre alguns intelectuais desequilibrados e o Partido Republicano nos Estados Unidos. Também tem algo importante a dizer às lideranças católicas, especialmente aos bispos.

 

O ataque contra o Capitólio em janeiro de 2021 (Foto: FlickrCC/Blink Ofanaye)

 

Os comentários positivos sobre a Rússia e Putin são uma extensão das guerras culturais e das políticas do descontentamento que animaram a direita católica global.

 

A popularidade de Putin faz parte de um ethos de ressentimento que vem de católicos integralistas do Ocidente contra um mundo cosmopolita e secularizado. O “ecumenismo do ódio” sobre o qual a revista La Civiltà Cattolica, aprovada pelo Vaticano e dirigida pelos jesuítas, falou há alguns anos em referência aos Estados Unidos também tem dimensões internacionais.

 

Os cismas da Igreja às vezes seguem ou até anunciam uma guerra. Há mais do que apenas uma palavra em comum entre “guerras culturais” e “guerras reais”: uma leva facilmente à outra.

 

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